Monólogo da esposa de um bombeiro de Chernobyl 4  

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Fezes vinte e cinco a trinta vezes ao dia. Com sangue e pus. A pele começou a rachar nos braços, nas pernas... O corpo todo cobriu-se de bolhas. Quando ele mexia a cabeça, ficavam tufos de cabelos no travesseiro... E tudo é tão querido. Amado... Eu tentava brincar: “Até é cômodo. Não é preciso trazer pente”. Em pouco tempo, rasparam as cabeças de todos eles. Eu mesma cortei o cabelo dele. Eu queria fazer tudo. Se eu pudesse aguentar, as vinte e quatro horas eu não me afastaria dele. Tinha pena de cada minutinho... Um só minutinho, e que pena... Chegou o meu irmão e se assustou: “Não vou deixar você voltar para lá!” E o pai diz para ele: “Não vai deixar essa daí? Vai entrar pela janela! Pela escada de incêndio!”

Me afastei... Retorno – uma laranja na mesinha dele... Grande, não amarela, mas quase cor de rosa. Sorri: “Deram-me. Pegue”. E a enfermeira, do outro lado do plástico, acena que não se deve comer essa laranja. Como ficou do lado dele por algum tempo, nem se fala em comer, dá medo até de tocar. “coma, vai, - pede. - Você gosta de laranja”. Eu pego a laranja nas mãos. E ele, nesse instante, fecha os olhos e adormece. Lhe davam injeções o tempo todo para que ele dormisse. Drogas. A enfermeira me olha apavorada... E eu? Eu estou disposta a fazer qualquer coisa para que ele não pense sobre morte... E que a doença dele é terrível, e que eu tenho medo dele... Pedaço de uma conversa... Na minha memória... Alguém argumenta: “Você não deve esquecer: ali não está mais o seu marido, pessoa amada, mas um objeto radioativo com alta densidade de contaminação. Você não é uma suicida, afinal. Controle-se”. E eu, como louca: “Eu o amo! Eu o amo!” Ele dormia, eu sussurrava: “Eu te amo!” Andava pelo corredor do hospital: “Eu te amo!” Carregava o penico: “Eu te amo!” Lembrava como nos vivíamos antes... No nosso albergue... Ele adormecia à noite só quando segurava a minha mão. Ele tinha esse hábito: enquanto dormia, segurar a minha mão. A noite toda.

E no hospital, eu é que pego na mão dele e não solto...

Noite. Silêncio. Estamos sozinhos. Me olhou com muita atenção e subitamente falou:

  • Quero tanto ver o nosso bebê. Como será que é?
  • E como vamos chamar?
  • Bem, isso é você mesma que vai inventar...
  • Porque eu mesma, se somos dois?
  • Então, se nascer um menino, que seja Vássia, e se menina, Natachka.
  • Como assim Vássia? Eu já tenho um Vássia. Você! Não preciso de outro.

Eu ainda não sabia o quanto o amava! Ele... Só ele... Como cega! Até mesmo não sentia empurrões sob o coração... Apesar de estar de seis meses já... Eu pensava que ela está dentro de mim, minha pequena, e está protegida. Minha pequena...

Que eu pernoitava na câmara dele, nenhum dos médicos sabia. Não suspeitavam. As enfermeiras me deixavam entrar. No começo, também tentavam convencer: “Você é nova. O que é que está inventando? Não é uma pessoa, é um reator. Vão queimar juntos”. Eu, como cachorrinho, corria atrás delas... Passava horas na porta. Pedia-implorava. E então elas: “Que o diabo te carregue! Você é louca”. De manhã, antes das oito horas, quando começavam as visitas dos médicos, acenam através do plástico: “Fuja!”. Fujo por uma hora para o hotel. E das nove da manhã até as nove da noite, tenho autorização. As pernas ficaram roxas até o joelho, incharam, de tanto que me cansava. Minha alma era mais forte que o corpo... Meu amor...

Enquanto estava com ele... Não faziam isso... Mas, quando saía, o fotografavam... Nenhuma roupa. Nu. Só um lençol leve por cima. Eu trocava todo dia esse lençol, e à noite ela estava ensanguentada novamente. Levanto ele, e nos meus braços ficam pedacinhos de pele, grudam. Peço: “Querido! Me ajude! Apoie-se sobre o braço, sobre o cotovelo, o quanto puder, para que eu alise a sua cama, para não deixar nenhuma costura, nenhuma dobrinha”. Qualquer costura – já é uma ferida nele. Eu cortei as unhas até a carne, para não o arranhar de alguma forma. Nenhuma das enfermeiras tinha coragem de chegar, tocar, se precisa de algo, me chamam. E eles... Eles fotografavam... Diziam que é para a ciência. E eu os expulsaria de lá a pontapés! Gritaria e bateria! Como eles podem! Se eu pudesse não os deixar entra... Se...

Saio do quarto para o corredor... E vou contra a parede, contra o sofá, porque não vejo nada. Paro a enfermeira de plantão: “Ele está morrendo”. Ela me responde: “ O que é que você quer? Ele recebeu mil e seiscentos roentgen, e a dose mortal é de quatrocentos”. Ela também tem dó, mas de outro jeito. E aquilo é tudo meu... Tudo amado.

Quando eles todos morreram, no hospital foi feita uma reforma... Lixaram as paredes, implodiram o piso e levaram embora...

Depois, o último... Lembro por partes... Tudo flutua...

À noite, estou sentada ao lado dele na cadeirinha... às oito da manhã: “Vássenka, vou indo. Descansar um pouquinho”. Abre e fecha os olhos – deixou. Mas chego até o hospital, até o meu quarto, deito no chão, não conseguia ficar na cama, doía tudo, e a auxiliar de limpeza já está batendo: “Vai! Corre até ele! Está chamando sem dó!” E naquela manhã Tanya Kibenok pediu tanto, chamou: “Vamos comigo para o cemitério. Não poderei ir sem você”. Naquela manhã enterraram Vitia Kibenok e Volódia Pravik. Ele era amigo de Vitia, nossas famílias eram amigas. Um dia antes da explosão, tiramos foto juntos no nosso albergue. Eles, os nossos maridos, estão tão bonitos! Alegres! Último dia daquela nossa vida... De antes do Chernobyl... Estamos tão felizes!

Voltamos do cemitério, ligo rapidinho para a enfermeira de plantão: “Como ele está?” - “Morreu há quinze minutos”. Como? Passei a noite toda com ele. Só me afastei por três horas! Fiquei na janela, gritando: “Porque? O que fiz?” Olhava para o céu e gritava... Pro hotel todo ouvir... Tinham medo de chegar perto de mim... Voltei a mim: vou ver pela última vez! Vou ver! Rolei da escada... Ele estava ainda na câmara, não levaram. Últimas palavras: “Liússia! Liússenka!” - “Deu uma saidinha. Já vem”, - tranquilizou a enfermeira. Suspirou e ficou quieto.

Já não desgrudei mais dele... Andei com ele até o caixão... Não me lembro do caixão, mas do grande saco plástico... Esse saco... Perguntaram: “Quer ver com que iremos vesti-lo?” Quero! Vestiram com uniforme de gala, colocaram o quepe sobre o peito. Não conseguiram achar sapatos, os pés incharam. Bolas em vez dos pés. O uniforme de gala também foi cortado, não conseguiam colocar, já não havia mais corpo inteiro. Tudo – uma ferida sangrenta. No hospital nos últimos dois dias... Levanto a mão dele, e o osso está mexendo, solto, os tecidos soltaram-se do osso. Pedacinhos do pulmão, pedacinhos do fígado saíam pela boca... Engasgava-se com as próprias entanhas... Enrolo o braço em gaze e enfio na boca dele, tiro tudo isso de dentro... É impossível contar! É impossível escrever! E até mesmo viver... Era tudo tão querido... Tão... Nenhum tamanho de sapato servia... Colocaram descalço no caixão...

Na minha frente... Enfiaram ele, em uniforme de gala, no saco plástico e fecharam. E foi esse saco que colocaram no caixão de madeira... E o caixão, dentro de outro saco... O plástico é transparente, mas muito grosso. E já tudo isso junto botaram num caixão de zinco, mal conseguiram enfiar. Ficou só o quepe em cima.
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